Ela(e), Três Mendigos e um Cristo do Avesso

Recomendado assistir primeiro ao filme, a menos que esteja curioso e não queira experimentar algumas das cenas mais chocantes do cinema contemporâneo

CONTÉM SPOILERS DO FILME "ANTICRISTO"

Filme de 2009 que marca a volta do diretor Lars Von Trier e a primeira parte da Trilogia da Depressão, Anticristo é um filme interpretativo e um grande divisor de águas. Enquanto alguns falam que se trata de um filme misógino, outros dizem que não passa de um apanhado de cenas cheias de gore, sangue, tortura e sexo que tinham como único objetivo promover o filme através da polêmica. Anticristo trata de assuntos muito mais relevantes, ainda mais considerando a filmografia do diretor que contém "Dançando no Escuro" e "Dogville".

Sinopse

O filme conta a história de um casal, ambos sem nome, que perde o filho em um trágico acidente. O pequeno cai da janela enquanto os pais fazem sexo. Esta detalhe é essencial para o desenrolar do filme. Ela é diagnosticada com um luto patológico e Ele, um terapeuta, decide ajudar a esposa a superar os momentos difíceis ao levá-la para uma cabana na floresta Éden. Vemos com o passar do filme as etapas que a esposa enfrenta em seu luto e a total ineficiência do tratamento. Até o fatídico momento em que Ela tortura seu marido e mutila o próprio clitóris (eu avisei que teriam spoilers).

Interpretação

Vamos começar pelo final. Nos minutos finais do filme é mostrado que Ela viu o menino se dirigindo a janela, porém em vez de parar o coito (não sei se existe palavra muito melhor para a situação), Ela continua. A cena de castração feminina, em que a esposa corta o próprio clitóris, mostra que, na visão dela, a culpa de seu filho ter morrido é de seu próprio prazer (sexo servindo como símbolo). 

Porém, a revolta de Ela não é apenas com seu impulso sexual e seu corpo. Seu ódio e nojo é para com sua natureza (representando a natureza humana), que guia nossas ações e nos transforma nos seres mais animalescos, que ignoram a razão e o sentimento. No final das contas Anticristo é um filme sobre a repugnante natureza humana.

Ela fazia uma pesquisa sobre feminicídio, em que várias ilustrações, fotos e documentos mostravam mulheres sendo torturadas e mortas através dos tempos, simplesmente por serem mulheres (mostrando o controle da sociedade misógina sobre as mulheres e sua natureza). Em contraponto com todo o sofrimento de Ela, temos Ele tentando ajudar (porém apenas tentando controlá-la de outra maneira). O controle que Ele tenta exercer sobre Ela, junto com a percepção de que o marido tinha liberdade de exercer sua natureza (extremamente semelhante a dela) é o que causam o choque psicológico na mulher e motiva as torturas em Ele (incluindo atravessar sua panturrilha com um peso, representando o fardo que as mulheres carregaram durante séculos).

Conforme vamos acompanhando o tratamento em Ela, alguns flashbacks da última que fez que a esposa e seu filho estiveram na cabana da floresta são mostrados. As mutilações em animais e a tentativa de trocar os sapatos do filho, representam a vontade de Ela de transformar a Natureza, quando se deparou com o nojo que sentia por si mesma e pela humanidade. Essa relação com a Natureza é salientada pela presença dos Três Mendigos, Luto (uma corça), Dor (uma raposa) e Desespero (um corvo), que representam o pior do Ser Humano, mas que ao mesmo tempo mostram que estes são sentimentos naturais e inerentes.

Mais um detalhe que gostaria de pontuar é: o casal sem nome vive sozinho na floresta, em relativa paz, até o momento que Ela entende sua natureza e se revolta. O filme é claramente uma "releitura" do conto de Adão e Eva; com o casal representando não apenas as personagens bíblicas, mas também a humanidade, e o entendimento da natureza humana é a maçã, o fruto da Arvore da Ciência do Bem e do Mal. Mostrando que todos os aspectos da psique humana estão presentes desde o início dos tempos, quer gostemos disso ou não. Caso ainda esteja na dúvida, lembre-se que o nome da floresta é Éden. 

Aspectos Gerais

Todos os aspectos técnicos do filme são exemplares, desde a fotografia até as atuações , passando pela direção excelente e ambientação. O filme é dividido em capítulos, Prologo e Epílogo. A tomada inicial em preto e branco e em câmera lenta do Prólogo já vale o "ingresso". Obviamente não é um filme que agrada a todos, principalmente pelo gore e pelas cenas de sexo explícito, e por ser um filme que exige muito pensar e muita reflexão (resumindo, não assista em uma tarde de verão). Anticristo é um daqueles filmes em que cada imagem tem um significado mascarado pelo slow-motion e pelos planos bizarros e mórbidos.

Entretanto, mesmo com um roteiro cheio de significação, direção competente, direção de arte de qualidade e atuações exemplares de Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, o filme peca em um detalhe muito simples: o tom. O filme, concebido como um terror, erra no tom pela falta de timing e acaba por se tornar muito mais um drama cheio de gore do que o terror psicológico desejado pelo dinamarquês. A tensão contínua acaba por não causar surpresa ou medo mesmo nas cenas mais chocantes e a falta de uma pausa acaba anestesiando o espectador para toda a estética impressionante do filme. O problema com o timing se dá principalmente com a trilha sonora extremamente pontual. Apesar de inegavelmente boa, ela tenta transmitir sentimentos que muitas vezes estão subentendidos nas imagens, que seriam muito melhor utilizadas se em silêncio, e é completamente ausente em momentos que demandam alguma música ao fundo.

Veredito

Anticristo é um filme muito bom, mas que peca pela extrema complexidade da trama (o que sabemos acabou trazendo o título de misógino à obra) e pelos problemas referentes ao timing. Apesar disso tem um roteiro espetacular, fotografia orgásmica e direção exemplar. Com toda certeza é um filme obrigatório para qualquer um que quer se aprofundar na sétima arte.




Já assistiram Anticristo ou algum outro filme de Lars von Trier? O que acharam da minha interpretação do filme? Não se esqueçam de comentar aqui embaixo, compartilhar com os amigos (ou não!) e de curtir a página no Facebook.