domingo, 1 de novembro de 2015

A melodia da noite




A noite me chama. Demoro para entrar nos domínios de Morpheus e quando me vejo deslizando calmamente pelo sonho sou acordado pela melodia da noite.
Pode ser que alguns de vocês nunca tenham realmente escutado a música da madrugada, pode ser que a maioria de vocês nunca sentiu a ressonância das notas misteriosas, mas ela está lá. A música mascarada de silêncio retumba e vibra como sonhos febris, invadindo nossos corações e clareando os cantos mais escuros do nosso subconsciente.
Deitado sozinho no escuro abismal de meu quarto, escuto os poucos carros que passam na Vila Mariana, voltando, atrasados, das matinês agitadas. Esses são os violinos introduzindo a melodia.
Em seguida os sons mais distantes da cidade sempre desperta chegam aos meus ouvidos. O baixo, porém constante, murmúrio de São Paulo começa a acompanhar os violinos silenciosos, como uma solitária flauta doce em meio um mar de cordas.
Com o tempo, conforme a sinfonia avança, meus ouvidos e meus pensamentos se expandem para sons mais sutis. A princípio penso ser fruto de minha imaginação, porém percebo com clareza os dedilhados no teclado de um computador trabalhando na Bela Vista, madrugada adentro. Os xilofones entram aos poucos na música silenciosa.
A introdução calma está perto do fim e é substituida pelo clímax trágico e agitado iniciado por ganidos de cães abandonados nas vielas, como um piano em staccato. Logo ouço os gemidos de dor das pobres almas vítimas de violência sexual que como uma forte nota de trompa cria uma terrível surpresa na melodia antes em calmaria.
Os trompetes de armas criam o drama necessário para coroar os latrocínios nas ruas mais afastadas. E um homem esmagando o crânio de uma mulher na Avenida do Estado é o surdo e os pratos da sinfonia terrível. Por fim chegam os violoncelos das agulhas e do fim já traçado dos usuários nas bocas de fumo. O segundo ato está prestes a terminar com uma oitava abaixo cheia de pesar.
Uma pausa. Uma pausa que parece se estender por horas, mas são apenas alguns segundos necessários para que eu possa ouvir o ronco baixo das crianças embaladas pelas mães, como violas que abafam o sinistro violoncelo e a televisão no quarto de um casal como um clarinete, que reprime o tom metálico dos trompetes.
Os violinos param de tocar e as notas agudas do piano são substituídas pelos graves sustenidos de latidos de cães para os donos que chegam em casa. O terceiro ato toca com um tom esperançoso e um tempo sonolento diferente do andante da introdução e do allegretto do segundo ato.
A flauta doce se torna mais lenta, enquanto os xilofones pararam completamente a muito tempo, assim como a trompa e o clarinete.
O terceiro ato chega ao fim com uma nota da flauta em aberto como uma deixa para a estréia de um saxofone... A noite me chama... Me levanto da cama para participar da melodia da noite...

Um comentário:

  1. Se revelando escritor eclético, porém todos os textos com riqueza de detalhes e muito envolvente... Adorei, aguardo os outros contos da série.

    ResponderExcluir